CARAVAGGIO The Conversion of St. Paul c. 1600 Oil on cypress wood, 237 x 189 cm Odescalchi Balbi Collection, Rome |
Acho uma lástima — ou, na melhor das hipóteses, um grande desperdício — ver alguém passar por um curso de filosofia, de psicologia ou por uma formação em psicanálise sem que seja radicalmente marcado por essa experiência. Nos casos em que o indivíduo é educado em instituições mais rigorosamente permeadas por “preconceitos derivados do senso comum, das crenças habituais de sua época ou sua nação, e de convicções que cresceram em sua mente sem a cooperação ou o consentimento de sua razão”, como diria Russell em O valor da filosofia, a expectativa natural é a de que passe por uma revolução interna e seja ainda mais estruturalmente mobilizado por uma formação filosófica. Por outro lado, o entranhamento da nossa formação (o que chamamos de ‘nossas raízes’, termo que às vezes me causa certa ojeriza) pode constituir um entrave ao (saudável) fluxo do desenvolvimento psíquico.
Muitas foram as vezes em que pude presencialmente testemunhar grandes revoluções individuais, entre meus colegas e entre meus alunos na filosofia e na psicologia. A formação em cada um desses campos de conhecimento — quando ocorre de maneira plena — implica uma ‘conversão’ própria. Reconheço que o termo conversão é péssimo, e nem as aspas, das quais tanto abusamos, maquiam esse uso deficitário. Mantenho-o por falta de termo melhor.
Esperamos que, da formação em filosofia, se siga uma visão efetivamente crítica da realidade, incompatível com militância e identitarismo, mas também com os já mencionados preconceitos, crenças e convicções comuns compartilhadas. Embora a filosofia obviamente não seja o único caminho para nos libertar dessa condição, constitui um caminho milenarmente privilegiado. Esta é a razão pela qual tanto me frustro quando vejo alguém passar pela filosofia e se manter, ainda nos termos do Russell, restrito a um mundo “definido e óbvio”, isto é, a um mundo em que os “objetos comuns não levantam questionamentos” e que “possibilidades incomuns são desdenhosamente rejeitadas”. A filosofia, concordo com Russell, não é capaz “de nos dizer com certeza o que é a verdadeira resposta para as dúvidas que levanta”, mas “é capaz de sugerir muitas possibilidades que ampliam nossos pensamentos e os liberta da tirania do costume”. Também é minha crença a compreensão de que a filosofia deve diminuir “o nosso sentimento de certeza sobre o que as coisas são”, e deve, por outro lado, aumentar “consideravelmente o nosso conhecimento a respeito do que pode ser”. Ainda em consonância com o mestre Russell, acredito na possibilidade que a filosofia tem de remover “o dogmatismo, um tanto arrogante, daqueles que nunca viajaram para a região da dúvida libertadora”, e de que nos capacita a manter viva a “sensação de maravilha, mostrando coisas comuns em um ponto de vista incomum”.
Nutro expectativa semelhante por quem passa por um curso de psicologia ou por uma formação em psicanálise. Acho que, nesses dois últimos casos, ainda se impõe uma obrigação adicional, no caso, a de revelar, por meio de seus pensamentos, palavras e atos, o interesse e a curiosidade pelo outro, a abertura visível e explícita à escuta. Espero, no mesmo sentido, que um profissional da área psi tenha sensibilidade especial em relação às políticas públicas em saúde mental e ao sofrimento psíquico. Embora seja um mero estudante de psicologia, estou certo de que nossa imersão no curso (por meio de tantas aulas, iniciações científicas, estágios e atividade de extensão) deve nos ‘converter’ a uma postura de escuta refinada e de genuíno interesse pelas dores e alegrias (afinal, não somos urubus) do outro. Ainda sobre o que acabo de dizer, cada vez mais, considero uma obrigação minha investir na minha capacidade de acolher em lugar de simplesmente tolerar, de fundir ao invés de demarcar a alteridade. Há questões técnicas, metodológicas e estruturais imprescindíveis envolvidas no ofício do psicólogo, mas a psicologia também flerta com uma dimensão ‘espiritual’ (mais uma vez busco refúgio nas aspas): só essa esfera pode explicar as nossas funções mentais superiores, o nosso aparelho psíquico, o nosso interesse pelo outro.
Muitas foram as vezes em que pude presencialmente testemunhar grandes revoluções individuais, entre meus colegas e entre meus alunos na filosofia e na psicologia. A formação em cada um desses campos de conhecimento — quando ocorre de maneira plena — implica uma ‘conversão’ própria. Reconheço que o termo conversão é péssimo, e nem as aspas, das quais tanto abusamos, maquiam esse uso deficitário. Mantenho-o por falta de termo melhor.
Esperamos que, da formação em filosofia, se siga uma visão efetivamente crítica da realidade, incompatível com militância e identitarismo, mas também com os já mencionados preconceitos, crenças e convicções comuns compartilhadas. Embora a filosofia obviamente não seja o único caminho para nos libertar dessa condição, constitui um caminho milenarmente privilegiado. Esta é a razão pela qual tanto me frustro quando vejo alguém passar pela filosofia e se manter, ainda nos termos do Russell, restrito a um mundo “definido e óbvio”, isto é, a um mundo em que os “objetos comuns não levantam questionamentos” e que “possibilidades incomuns são desdenhosamente rejeitadas”. A filosofia, concordo com Russell, não é capaz “de nos dizer com certeza o que é a verdadeira resposta para as dúvidas que levanta”, mas “é capaz de sugerir muitas possibilidades que ampliam nossos pensamentos e os liberta da tirania do costume”. Também é minha crença a compreensão de que a filosofia deve diminuir “o nosso sentimento de certeza sobre o que as coisas são”, e deve, por outro lado, aumentar “consideravelmente o nosso conhecimento a respeito do que pode ser”. Ainda em consonância com o mestre Russell, acredito na possibilidade que a filosofia tem de remover “o dogmatismo, um tanto arrogante, daqueles que nunca viajaram para a região da dúvida libertadora”, e de que nos capacita a manter viva a “sensação de maravilha, mostrando coisas comuns em um ponto de vista incomum”.
Nutro expectativa semelhante por quem passa por um curso de psicologia ou por uma formação em psicanálise. Acho que, nesses dois últimos casos, ainda se impõe uma obrigação adicional, no caso, a de revelar, por meio de seus pensamentos, palavras e atos, o interesse e a curiosidade pelo outro, a abertura visível e explícita à escuta. Espero, no mesmo sentido, que um profissional da área psi tenha sensibilidade especial em relação às políticas públicas em saúde mental e ao sofrimento psíquico. Embora seja um mero estudante de psicologia, estou certo de que nossa imersão no curso (por meio de tantas aulas, iniciações científicas, estágios e atividade de extensão) deve nos ‘converter’ a uma postura de escuta refinada e de genuíno interesse pelas dores e alegrias (afinal, não somos urubus) do outro. Ainda sobre o que acabo de dizer, cada vez mais, considero uma obrigação minha investir na minha capacidade de acolher em lugar de simplesmente tolerar, de fundir ao invés de demarcar a alteridade. Há questões técnicas, metodológicas e estruturais imprescindíveis envolvidas no ofício do psicólogo, mas a psicologia também flerta com uma dimensão ‘espiritual’ (mais uma vez busco refúgio nas aspas): só essa esfera pode explicar as nossas funções mentais superiores, o nosso aparelho psíquico, o nosso interesse pelo outro.