REMBRANDT Harmenszoon van Rijn Jeremiah Lamenting the Destruction of Jerusalem 1630 Oil on panel, 58 x 46 cm Rijksmuseum, Amsterdam |
23 de julho de 2024. Pensamentos durante a corrida
Muitos pensamentos, aleatórios e desconectados entre si, foram desencadeados em mim quando, durante uma corrida, passei em frente a um grande outdoor no qual a imagem de uma garrafa de cerveja era associada à frase “a vida é aqui fora”.
Meu primeiro pensamento veio sob a forma de uma indagação, a saber: o que os publicitários estão querendo chamar de ‘vida’? Estarão recorrendo à velha fórmula extrovertida consoante a qual a superação do estágio de mera sobrevivência só é possível quando estamos fora de nossos lares, na labuta, nas relações sociais, junto aos outros? Ou, a tirar pela associação com a cerveja, estarão propondo que a vida é tudo o que só pode ocorrer quando estamos imersos em meio às situações que podem ser simbolicamente traduzidas pelas imagens de sol, praia/clube, piscina/mar, samba/carnaval, churrasco e cerveja? Presumo que ambas as respostas agradariam os publicitários na hipotética sessão de brainstorming que precedeu à campanha: o que os publicitários estão chamando de ‘vida’ é a fórmula bem-sucedida, e em conformidade com a qual a vida se expressa no suor, sangue, lágrimas e sorrisos que deixamos fora de casa. A fórmula de vida que determina como me oriento no mundo é diametralmente oposta da sugerida pelo outdoor.
Dos gregos antigos aos publicitários atuais, vida e felicidade, independentemente de como os conceituamos, guardam estreita relação. Justifica-se, nesse sentido, a tentativa de associar esses dois conceitos para fins publicitários. No caso do outdoor sobre o qual estou falando, não foi preciso fazer menção ao termo ‘felicidade’ e multiplicar informações; o termo ‘felicidade’ foi substituído pela visão, mais aprazível, de uma refrescante garrafa de cerveja. A vida é felicidade, e felicidade é, destarte, portar uma garrafa de cerveja enquanto se está sob as bênçãos do céu aberto.
Do ponto de vista pessoal, chama-me a atenção a associação entre a cerveja e a felicidade. Desde que entrei em sobriedade, há quase dois anos, tenho uma clareza cada vez maior de que nunca fui feliz. Nunca fui feliz. Minha percepção de autorrealização não se enquadra em nenhuma das conhecidas definições de felicidade. Estou de acordo com o saudoso psicanalista Contardo Calligaris, cujo objeto de desejo não era a felicidade, mas ter uma vida interessante. Ter uma vida interessante é viver plenamente. Nesse caso, a régua da vida não é o “lá fora”, mas o aqui dentro. A vida é o que acontece aqui dentro: “a vida é aqui dentro”. Nossas percepções, do mundo, de nós mesmos e de nossas sensações, são qualitativamente intrínsecas, inalienáveis e intransferíveis. Perder-se em meio aos tantos estímulos do lá fora é a fonte de verdadeiro risco. Uma vida interessante se esvai com mais facilidade no cenário proposto pela fórmula extrovertida de vida.