20/08/2024

(Autorais) 20 de Agosto de 2024. Será que jogar conversa fora é realmente jogar algo fora?

Good Neighbours (Gossip / The Gossips), 1885
John William Waterhouse (1849–1917)
Oil on canvas
Private collection
 
O que fazer quando não há nada a fazer? O que fazer quando não há um trabalho para realizar, uma louça para lavar, uma comida para fazer, uma televisão para ver, um livro para ler, um som para ouvir ou ainda (não pode faltar nessa lista) um celular para manusear? O que fazer quando você está em um lugar (público ou não) e alguém está a seu lado? Parece-me haver não mais que três opções: (i) fazer algo; (ii) nada fazer e manter-se em silêncio, fundido consigo mesmo e em estado de contemplação de suas próprias sensações e pensamentos; (iii) jogar conversa fora para preencher os espaços de silêncio que costumam tanta angústia causar no humano.

Enquanto você espera alguém em um ambiente (por exemplo, uma aula de seu filho), você pode (i) fazer algo: você pode olhar de maneira exploratória o ambiente, manusear o celular ou mesmo ler um livro; (ii) você pode nada fazer, se é que podemos assim nos referir ao ato de se dedicar a acompanhar nossa respiração e sensações, ‘suspendendo o juízo’ (se isso é possível) em relação a todo fazer; (iii) você pode ‘trocar’ palavras com quem está a seu lado. É o que se chama de ‘jogar conversa fora’, um jogo de comunicação em que um sujeito ‘a’ menciona fatos desimportantes de seu cotidiano para o sujeito ‘b’, que, por sua vez, também menciona fatos desimportantes de seu cotidiano. É possível que se passe duas horas dizendo sobre as frutas e doces que você gosta de comer ou sobre a rotina e os hábitos alimentares do seu filho. É possível que você passe duas horas discorrendo sobre os aspectos mais regulares de sua rotina pessoal ou de trabalho para alguém que mal sabe seu nome. Acredito que esse jogo constitui um rito que acabou se difundindo e mesmo se tornando necessário para manter um estado homeostático saudável dentro de uma sociedade que não consegue suportar o silêncio. 

Por outro lado, também é verdade que há exceções notáveis a esse modo de compartilhar espaços. Em Neither Wolf nor dog, Kent Burn nos relata um diálogo que teve com um índio Lakota: “Quando estão numa habitação e há silêncio, ficam nervosos. / Precisam preencher o espaço com sons. / Então, falam compulsivamente, mesmo antes de saber o que vão dizer.” A mesma compreensão é notada aqui no Brasil, por exemplo entre os Guarani Mbya: “Havia espaço para o silêncio, e ele não estava ali por acaso — ele era a resposta para as escutas. O silêncio é o momento em que você fica com você e se percebe em relação ao meio que ocupa, conecta-se com a natureza (ar, fogo, terra, água, madeira, borboleta), diminui o fluxo dos pensamentos e apenas se está. Não há necessidade de sempre se colocar no espaço projetando sua voz, como se isso representasse a sua existência. O silêncio nos possibilita ouvir os pequenos sons, as muitas vozes existentes, sentir o cheiro das pessoas, das coisas, dos lugares, ver de verdade e não apenas passar o olhar despercebido das profundidades e das cores, sentir a chegada das pessoas, sentir a mudança do tempo e a força e conexão de nossa existência com a terra. Foi o silêncio que me possibilitou compreender a importância do tempo.”

Entre os indivíduos que bebem além da conta ou que bebem em situações extraordinárias, jogar conversa fora é um expediente a que se recorre, ainda que inconscientemente, para distrair o tempo e os seus possíveis inspetores, aqueles que podem por algum motivo constituir um entrave para suas finalidades. Expediente semelhante é o jogo. É algo que, assim como o ‘jogar conversa fora’, está entre o fazer e o nada fazer. 

Retomo a pergunta com a qual dei início a essa reflexão: Será que jogar conversa fora é realmente jogar algo fora? Eu acho que sim. É jogar fora o seu tempo, a possibilidade de limpar sua mente do excesso de informações a que estamos cotidianamente submetidos, o cultivo de seu silêncio, a possibilidade de estar consigo mesmo. É fracassar na capacidade que temos de usar a linguagem para compreendermos a nós mesmos e de entabularmos, com o outro, um processo conjunto de engrandecimento, ainda que mínimo, via o cultivo de suas habilidades ‘espirituais’ ou via uma escuta sincera e autêntica.