25/08/2024

(Autorais) 24 de Agosto de 2024. Hoje, eu matei uma barata

 

Arte
GENTILESCHI, Artemisia
Judith Beheading Holofernes
c. 1620
Oil on canvas, 147 x 108 cm cm
Galleria degli Uffizi, Florence

Hoje eu matei uma barata. Não me recordo quando foi a última vez em que matei, mas é provável que tenha sido há um bom tempo. Ao matar essa pequena barata — ou talvez antes, já ao persegui-la — fui acometido por uma sensação desagradável, recôndita, mas não inédita.

Muitas vezes, matei formigas e outros pequenos insetos; na maior parte das vezes, de maneira involuntária. Em outras ocasiões, recorri aos pés ou aos dedos das mãos. No último caso, ora apertando meu dedo contra a mesa — exatamente em cima da formiga — ora apertando um dedo contra o outro durante a caminhada do inseto por meus dedos. Em comum, esses momentos não despertaram quaisquer sensações; matar uma formiga quase equivalia a brincar com um farelo de um pão ou a retirá-lo dos dedos por meio da fricção e do arrasto que fazemos com uns dedos sobre outros.

Também já matei muitas baratas. Mas matar uma barata exige um pouco de mais violência. Você precisa persegui-la, eventualmente arrastar móveis e pisar com alguma força. Quase sempre, é preciso pisar mais de uma vez; muitas vezes, é preciso pisar muitas vezes, seja para acertá-la seja para terminar a matança, quando então a barata, agonizando, mas ainda não morta, deixa de tentar escapar aos pés que, como um deus, determina a linha de demarcação entre a vida e a morte de uma criatura.

Matar uma barata não é tão indiferente quanto matar uma formiga, não sei se pela maior dificuldade de matá-la ou se por seu volume maior em relação às formigas. De qualquer maneira, não é comum eu pensar que estou fazendo um mal ao eliminar um ser que considero tão repugnante. Pelo menos até hoje, quando mato uma barata, sou indiferente em relação à questão da dignidade de sua existência; mas, direta ou indiretamente, especialmente hoje, enfrentei a inescapável violência que existe em mim, e que existe em você.

Morei em uma casa de cujas caixas de esgoto e de gordura saíam muitas baratas. Quando desinsetizava a casa, incontáveis baratas tontas escapavam dos bueiros, e a mim cabia a terrível ação de persegui-las e matá-las. Arrepiado com essas más lembranças, sou ainda invadido por uma sutil lembrança do mau cheiro desses insetos e do arrepio que percorria minha espinha e minha pele ao me ver diante de dezenas ou centenas de baratas ainda vidas. Lembro-me de ainda arrepiado na espinha e na pele, recolher, com pá e vassoura, os corpos das baratas. Não raramente, uma ou algumas se movimentavam, e mais uma vez eu precisava pisotear com toda minha força e todo o ódio (nunca soube se contra elas ou contra a situação) que me invadia.

Também já matei um rato e uma cobra. Sim, eu já matei mamíferos. Em ambos os casos, não distantes temporalmente, estava, então, na transição entre minha infância e minha adolescência. Eu não era indiferente quanto à dignidade da vida de um rato e de uma cobra. Antes, a existência de ratos e cobras me causavam indignação contra a própria criação. Jamais me esqueci de toda violência que precisei empregar para matá-los. Com aquele pedaço de pau que usei, teria sido capaz, com a força que tenho hoje, de matar um ser humano. Exatamente como fez ontem um homem contra outro.

Tão logo eu joguei pelo vaso sanitário a barata que eu matei, ainda sob o peso da desagradável sensação de matar, sentei-me em frente ao meu notebook e vi a reportagem sobre o homem que, com um pedaço de pau, matou outro. Aqui, é claro, a sensação foi de outra espécie, e tanto diminuiu quanto aumentou as emoções de fundo que eu portava. Ter matado uma barata me causou uma sensação inespecífica; se precisasse traduzir fenomenologicamente essa experiência, poderia arriscar que essa sensação se expressou sob a forma de uma náusea, uma desorientação psíquica, uma angústia. Conectei-me, então, com a antiga casa dos bueiros de baratas voadoras. A reportagem do segurança que matou o morador de rua causou-me também uma sensação desagradável, mas de outra espécie. Uma profunda tristeza juntou-se a uma desesperança. Por outro lado, é apenas o espetáculo do que realmente somos capazes de fazer, a exemplo do homem que, para proteger sua casa, seus bens, sua família ou sua honra (seu self material), é capaz de fazer o mesmo.

A violência existe em nós. A violência está em nós. Contra a marcha da violência, somos dotados de dispositivos que recebem, por parte de filósofos, psicólogos e sociólogos, diversas denominações. Idealizamos linhas e fronteiras imaginárias entre as criaturas que podemos matar e as que não podemos: no meu caso, parece ter sido aquela linha que se estende dos pequenos insetos a ratos e cobras; outros acreditam poder matar cachorros ou gatos ou macacos; outros ainda creem poder matar humanos; há também aqueles que causam queimadas; outros ainda são os que creem que homens, pela privilegiada posição moral e intelectual que ocupam entre os viventes, devem se abster de qualquer tipo de violência contra todo e qualquer outro vivente. Independentemente da posição ocupada por cada um de nós nessa hierarquia, precisamos todos lidar com sua própria violência. Não nos é dada a possibilidade de ter ou não ter violência. Somos todos violentos. Temos apenas a possibilidade de manejar a violência que invariavelmente existe em nós. Um mundo melhor talvez seja aquele em que sejamos moral-, emocional- e intelectualmente capazes de aceitar nossa condição.

O que devo fazer com que a violência faz de mim, eu, que, violento que sou, matei hoje uma barata?
 


(A.A e Carl Gustav Jung) Troca de cartas entre Bill W. (um dos fundadores de Alcoólicos Anônimos) e Carl Gustav Jung

 


Troca de cartas entre Bill W. (um dos fundadores de Alcoólicos Anônimos) e Carl Gustav Jung

Em 26 de Janeiro de 1961, Bill W. enviou uma carta ao famoso Dr. Carl Gustav Jung a propósito de Rowland H. A carta explica-se por si, e a resposta de Jung é extraordinária. Chama atenção como Jung encerra sua carta. Apreciem.

Caro Dr. Jung,
Esta carta de grande apreciação era devida há longo tempo. Permita que me apresente: sou Bill W., um cofundador da Sociedade Alcoólicos Anônimos.
Ainda que o Senhor certamente tenha ouvido de nós, eu duvido que o Senhor esteja consciente de que uma certa conversa que teve com um de seus pacientes, o Senhor Rowland H., no início dos anos 30, a qual teve um papel crítico na fundação de nossa Irmandade. Apesar de Rowland ter falecido há bom tempo, as recordações de sua experiência marcante enquanto em tratamento consigo tornou-se parte da história de Alcoólicos Anônimos. Nossa lembrança das afirmações de Rowland H. sobre sua experiência consigo foi assim:
Tendo esgotado outros meios de recuperação de seu alcoolismo, por volta de 1931, ele tornou seu paciente. Eu acredito que permaneceu sob seus cuidados por talvez um ano. Sua admiração pelo senhor era sem medida, e ele o deixou com um sentimento de muita confiança.
Para sua grande consternação, logo ele recaiu. Certo de que o senhor era seu “último recurso”, ele retornou a seus cuidados. Então seguiu-se a conversa com o senhor, que se tornou o primeiro elo de uma cadeia de eventos que conduziu à fundação de Alcoólicos Anônimos.
Minha lembrança do que me relatou sobre essa conversa é isso: primeiro de tudo, o Senhor disse francamente a ele de sua desesperança quanto a qualquer tratamento médico ou psiquiátrico que pudesse ser útil. Essa sua afirmação cândida e humilde foi sem sombra de dúvida a primeira pedra da base sobre a qual nossa Sociedade tem sido levantada.
Vindo do senhor, a quem ele admira e confia tanto, o impacto sobre ele foi imenso. Então, quando ele lhe perguntou se havia alguma outra esperança, o Senhor disse a ele que podia haver, uma vez que ele poderia ser o sujeito de uma experiência espiritual ou religiosa – em resumo, uma conversão genuína. O Senhor apontou-lhe como tal experiência, se acontecesse, poderia remotivá-lo quando nada mais poderia fazê-lo. Mas o Senhor pediu cuidado, pois, apesar de que tais experiências algumas vezes trouxeram sobriedade a alcoólatras, elas são relativamente raras. O Senhor recomendou que ele se colocasse em uma atmosfera religiosa e esperasse pelo melhor. Isso foi, eu creio a substância de seu conselho.
Logo após isso, o Senhor H ingressou nos Grupos Oxford, um movimento evangélico então no pico de seu sucesso na Europa, e da qual sem dúvidas o Senhor é familiar. O Senhor se lembrará sua grande ênfase nos princípios de autoavaliação, confissão, restituição, e dar-se em serviço a outros. Eles enfatizam fortemente a meditação e a oração. Nesse ambiente, Rowland H. passou por uma experiência de conversão que o livrou para sempre de sua compulsão por beber.
Retornando a New York, ele tornou-se muito ativo com os Grupos Oxford ali, liderado por um pastor episcopal, Dr. Samuel Shoemaker. Dr. Shoemaker foi um dos fundadores daquele movimento, e sua forte personalidade transmitia imensa sinceridade e convicção.
Por esse tempo (1932-34) os Grupos Oxford já tinham um número de alcoólatras sóbrios, e Rowland, sentindo que podia se identificar especialmente com esses sofredores, apresentou-se a si mesmo para ajudar a estabilizar outros. Um desses por acaso era um meu antigo colega de escola, Edwin T. (“Ebby”). Ele estava sob ameaça de prisão, mas o Senhor H e outro ex-alcoólatra membro dos Grupos Oxford procuraram sua liberdade condicional e o ajudaram a conseguir sua sobriedade.
Enquanto isso, eu segui o curso do alcoolismo e estava sob ameaça de prisão. Felizmente eu fiquei sob os cuidados de um médico, o Dr. William D. Silkworth – que era maravilhosamente capaz de compreender alcoólatras. Mas assim como o Senhor abriu mão de Rowland, ele abriu mão de mim.
Era sua teoria que alcoolismo tinha dois componentes – uma obsessão que compelia o sofredor a beber contra sua vontade e desejo, e algum tipo de dificuldade metabólica que ele então chamou de uma alergia. A compulsão garantia que o beber do alcoólatra continuaria adiante, e a alergia tornaria certo de que o sofredor iria se deteriorar finalmente, se tornar insano ou de que morreria. Apesar de eu ser um dos poucos que ele pensava que era possível ajudar, ele finalmente foi obrigado a me falar de minha desesperança; eu também teria que ser trancafiado. Para mim, isso era um golpe devastador. Assim como Rowland foi preparado para sua experiência de conversão pelo Senhor, assim meu maravilhoso amigo, Dr. Silkworth, preparou-me.
Ouvindo de minha situação, meu amigo Edwin T. veio ver-me em minha casa, onde eu estava bebendo. Era, então novembro de 1934. Há muito tempo tinha marcado meu amigo Edwin como um caso sem esperança. No entanto ali estava ele em um estado bem evidente de “livramento” que poderia sem dúvidas ser creditado por sua mera associação de pouco tempo com os Grupos Oxford. No entanto esse óbvio estado de livramento, tão distinto de sua depressão usual, era tremendamente convincente. Porque ele era um parceiro de sofrimento, ele podia inquestionavelmente comunicar-se comigo em grande profundidade. Eu soube no ato que deveria encontrar uma experiência como a dele, ou morreria.
Voltei novamente aos cuidados do Dr. Silkworth onde eu pude novamente voltar a estar sóbrio e conseguir uma visão mais clara da experiência de livramento de meu amigo, e da aproximação de Rowland H a ele.
Desintoxicado novamente do álcool, senti-me terrivelmente deprimido. Isso parecia ser causado pela minha inabilidade de conseguir a menor fé. Edwin T visitou-me novamente e repetiu as fórmulas simples dos Grupos Oxford. Assim que ele saiu eu fiquei ainda mais deprimido. Em grande desespero eu gritei, “Se existir um Deus, que ele se mostre a si mesmo.” Imediatamente veio uma iluminação de grande impacto e dimensão, algo que tentei descrever no livro “Alcoólicos Anônimos” e em “AA Alcança a Maioridade”, textos básicos que estou lhe enviando. Meu livramento da obsessão pelo álcool foi imediato. Eu sabia que era um homem livre no ato. Logo depois de minha experiência, meu amigo Edwin veio ao hospital trazendo-me uma cópia de William James “As Variedades da Experiência Religiosa”. Esse livro me deu a percepção de que a maioridade das experiências de conversão, seja qual for sua variedade, tem um denominador comum do colapso do ego em profundidade. A pessoa enfrenta um dilema impossível. Em meu caso o dilema foi criado pelo meu beber compulsivo e o profundo sentimento de desesperança foi grandemente aprofundado pelo meu médico. E foi mais aprofundado ainda por meu amigo alcoólatra quando me contou de seu veredicto de desesperança a respeito de Rowland H.
Na sequência de minha experiência espiritual veio uma visão de uma sociedade de alcoólatras, cada um identificando-se com e transmitindo sua experiência ao próximo – ao estilo de corrente. Se cada sofredor levasse a notícia da desesperança científica do alcoolismo a cada novo interessado, ele poderia ser capaz de fazer todo recém-chegado aberto a uma experiência espiritual transformadora. Esse conceito provou ser o fundamento de tal sucesso como Alcoólicos Anônimos desde então alcançou. Isso tornou as experiências de conversão – quase que todas as variedades descritas por James – disponíveis quase que em uma base por atacado. Nossas recuperações sustentadas pelo último quarto de século somam cerca de 300.000. Na América e pelo mundo há hoje 8.000 grupos.
Assim ao Senhor, ao Dr. Shoemaker dos Grupos Oxford, a William James, e ao meu próprio médico Dr. Silkworth, nós de AA devemos essa tremenda benfeitoria. Como o Senhor agora verá com clareza, essa surpreendente cadeia de eventos na realidade começou muito antes em seu consultório, e está diretamente baseada em sua própria humildade e profunda percepção.
Muitos AAs atentos estudam seus escritos. Porque é nossa convicção de que o homem é algo mais que intelecto, emoção, e dois dólares de medicação, o Senhor se tornou encantador para nós.
Como nossa Sociedade cresceu, desenvolveu suas Tradições para unidade e estruturou seu funcionamento será visto nos textos e material em panfletos que estou lhe enviando.
O Senhor também irá interessar-se em saber que somado à “experiência espiritual”, muitos AAs descrevem uma grande variedade de fenômenos psíquicos, sendo considerável seu peso cumulativo. Outros membros têm – seguindo-se a sua recuperação em AA – se beneficiado muito por seus médicos. Uns poucos têm se intrigado pelo “I Ching” e sua notável introdução àquele trabalho.

Por favor, esteja certo de que seu lugar na afeição e na história da irmandade é como nenhum outro.

Gratamente seu
William G. W.
Cofundador de Alcoólicos Anônimos.

***************
RESPOSTA DE C.G.JUNG A BILL W.
Senhor William G. Wilson
Alcoólicos Anônimos
Caixa Postal 459 Grand Central Station
New York 17, N.Y.

Caro Senhor Wilson
Sua carta foi muito bem-vinda realmente,
Não tinha mais notícias de Roland H., e frequentemente imaginava qual seria seu destino.
Nossa conversa que ele adequadamente reportou ao Senhor tem um aspecto do qual ele não soube. A razão pela qual não pude lhe dizer tudo era que naqueles dias eu estava excessivamente cuidadoso com o que dizia. Descobri que fui mal-entendido de todos os modos possíveis. Por isso estive tão cuidadoso quando falei a Roland H. Mas o que eu realmente pensei sobre isso foi o resultado de muitas experiências com homens desse tipo.
Sua avidez por álcool era o equivalente a um nível baixo de sede de nosso ser por completude, expresso em linguagem medieval: a união com Deus.
Como alguém pode formular tal insight em uma linguagem que não seja mal-entendida por outros.
A única e legítima forma de tal experiência é, que isso acontece a você em realidade e isso só pode acontecer a você quando você caminha numa trilha que o leva a uma compreensão mais alta. Você pode ser conduzido àquele alvo por um ato de graça ou através de um contacto com amigos ou através de uma alta educação da mente além dos confins do mero racionalismo. Eu vejo de sua carta que Roland H. escolheu o segundo caminho, que é, sob as circunstâncias, obviamente o melhor.
Estou fortemente convencido de que o princípio do mal prevalecente neste mundo, conduz a necessidade espiritual não reconhecida à perdição, se isso não for contraposto ou por um insight religioso real ou pelo muro protetor da comunidade humana. Uma pessoa comum, não protegido por uma ação vinda de cima e isolada em sociedade não pode resistir ao poder do mal, que é chamado muito adequadamente de Diabo. Mas o uso dessas palavras levantam tantos erros que alguém deve manter-se longe delas tanto quanto possível.
Essas foram as razões porque eu não puder dar uma explanação completa e suficiente a Roland H. mas estou arriscando-a com você porque concluo de sua muito decente e honesta carta, que você adquiriu um ponto de vista acima das platitudes enganosas que ouvimos usualmente quanto ao alcoolismo.
Veja, Álcool em Latim é “spiritus” e usamos a mesma palavra para a mais alta experiência religiosa assim como para o mais depravante veneno. A formula auxiliadora portanto é: spiritus contra spiritum.

Agradecendo-lhe novamente sua gentil carta, eu permaneço seu sinceramente
Carl Gustav Jung.

20/08/2024

(Autorais) 20 de Agosto de 2024. Será que jogar conversa fora é realmente jogar algo fora?

Good Neighbours (Gossip / The Gossips), 1885
John William Waterhouse (1849–1917)
Oil on canvas
Private collection
 
O que fazer quando não há nada a fazer? O que fazer quando não há um trabalho para realizar, uma louça para lavar, uma comida para fazer, uma televisão para ver, um livro para ler, um som para ouvir ou ainda (não pode faltar nessa lista) um celular para manusear? O que fazer quando você está em um lugar (público ou não) e alguém está a seu lado? Parece-me haver não mais que três opções: (i) fazer algo; (ii) nada fazer e manter-se em silêncio, fundido consigo mesmo e em estado de contemplação de suas próprias sensações e pensamentos; (iii) jogar conversa fora para preencher os espaços de silêncio que costumam tanta angústia causar no humano.

Enquanto você espera alguém em um ambiente (por exemplo, uma aula de seu filho), você pode (i) fazer algo: você pode olhar de maneira exploratória o ambiente, manusear o celular ou mesmo ler um livro; (ii) você pode nada fazer, se é que podemos assim nos referir ao ato de se dedicar a acompanhar nossa respiração e sensações, ‘suspendendo o juízo’ (se isso é possível) em relação a todo fazer; (iii) você pode ‘trocar’ palavras com quem está a seu lado. É o que se chama de ‘jogar conversa fora’, um jogo de comunicação em que um sujeito ‘a’ menciona fatos desimportantes de seu cotidiano para o sujeito ‘b’, que, por sua vez, também menciona fatos desimportantes de seu cotidiano. É possível que se passe duas horas dizendo sobre as frutas e doces que você gosta de comer ou sobre a rotina e os hábitos alimentares do seu filho. É possível que você passe duas horas discorrendo sobre os aspectos mais regulares de sua rotina pessoal ou de trabalho para alguém que mal sabe seu nome. Acredito que esse jogo constitui um rito que acabou se difundindo e mesmo se tornando necessário para manter um estado homeostático saudável dentro de uma sociedade que não consegue suportar o silêncio. 

Por outro lado, também é verdade que há exceções notáveis a esse modo de compartilhar espaços. Em Neither Wolf nor dog, Kent Burn nos relata um diálogo que teve com um índio Lakota: “Quando estão numa habitação e há silêncio, ficam nervosos. / Precisam preencher o espaço com sons. / Então, falam compulsivamente, mesmo antes de saber o que vão dizer.” A mesma compreensão é notada aqui no Brasil, por exemplo entre os Guarani Mbya: “Havia espaço para o silêncio, e ele não estava ali por acaso — ele era a resposta para as escutas. O silêncio é o momento em que você fica com você e se percebe em relação ao meio que ocupa, conecta-se com a natureza (ar, fogo, terra, água, madeira, borboleta), diminui o fluxo dos pensamentos e apenas se está. Não há necessidade de sempre se colocar no espaço projetando sua voz, como se isso representasse a sua existência. O silêncio nos possibilita ouvir os pequenos sons, as muitas vozes existentes, sentir o cheiro das pessoas, das coisas, dos lugares, ver de verdade e não apenas passar o olhar despercebido das profundidades e das cores, sentir a chegada das pessoas, sentir a mudança do tempo e a força e conexão de nossa existência com a terra. Foi o silêncio que me possibilitou compreender a importância do tempo.”

Entre os indivíduos que bebem além da conta ou que bebem em situações extraordinárias, jogar conversa fora é um expediente a que se recorre, ainda que inconscientemente, para distrair o tempo e os seus possíveis inspetores, aqueles que podem por algum motivo constituir um entrave para suas finalidades. Expediente semelhante é o jogo. É algo que, assim como o ‘jogar conversa fora’, está entre o fazer e o nada fazer. 

Retomo a pergunta com a qual dei início a essa reflexão: Será que jogar conversa fora é realmente jogar algo fora? Eu acho que sim. É jogar fora o seu tempo, a possibilidade de limpar sua mente do excesso de informações a que estamos cotidianamente submetidos, o cultivo de seu silêncio, a possibilidade de estar consigo mesmo. É fracassar na capacidade que temos de usar a linguagem para compreendermos a nós mesmos e de entabularmos, com o outro, um processo conjunto de engrandecimento, ainda que mínimo, via o cultivo de suas habilidades ‘espirituais’ ou via uma escuta sincera e autêntica.
 
 

19/08/2024

(Autorais) A formação em filosofia, psicologia e psicanálise implicam uma 'conversão'

 

CARAVAGGIO
The Conversion of St. Paul
c. 1600
Oil on cypress wood, 237 x 189 cm
Odescalchi Balbi Collection, Rome
  

Acho uma lástima — ou, na melhor das hipóteses, um grande desperdício — ver alguém passar por um curso de filosofia, de psicologia ou por uma formação em psicanálise sem que seja radicalmente marcado por essa experiência. Nos casos em que o indivíduo é educado em instituições mais rigorosamente permeadas por “preconceitos derivados do senso comum, das crenças habituais de sua época ou sua nação, e de convicções que cresceram em sua mente sem a cooperação ou o consentimento de sua razão”, como diria Russell em O valor da filosofia, a expectativa natural é a de que passe por uma revolução interna e seja ainda mais estruturalmente mobilizado por uma formação filosófica. Por outro lado, o entranhamento da nossa formação (o que chamamos de ‘nossas raízes’, termo que às vezes me causa certa ojeriza) pode constituir um entrave ao (saudável) fluxo do desenvolvimento psíquico.

Muitas foram as vezes em que pude presencialmente testemunhar grandes revoluções individuais, entre meus colegas e entre meus alunos na filosofia e na psicologia. A formação em cada um desses campos de conhecimento — quando ocorre de maneira plena — implica uma ‘conversão’ própria. Reconheço que o termo conversão é péssimo, e nem as aspas, das quais tanto abusamos, maquiam esse uso deficitário. Mantenho-o por falta de termo melhor.

Esperamos que, da formação em filosofia, se siga uma visão efetivamente crítica da realidade, incompatível com militância e identitarismo, mas também com os já mencionados preconceitos, crenças e convicções comuns compartilhadas. Embora a filosofia obviamente não seja o único caminho para nos libertar dessa condição, constitui um caminho milenarmente privilegiado. Esta é a razão pela qual tanto me frustro quando vejo alguém passar pela filosofia e se manter, ainda nos termos do Russell, restrito a um mundo “definido e óbvio”, isto é, a um mundo em que os “objetos comuns não levantam questionamentos” e que “possibilidades incomuns são desdenhosamente rejeitadas”. A filosofia, concordo com Russell, não é capaz “de nos dizer com certeza o que é a verdadeira resposta para as dúvidas que levanta”, mas “é capaz de sugerir muitas possibilidades que ampliam nossos pensamentos e os liberta da tirania do costume”. Também é minha crença a compreensão de que a filosofia deve diminuir “o nosso sentimento de certeza sobre o que as coisas são”, e deve, por outro lado, aumentar “consideravelmente o nosso conhecimento a respeito do que pode ser”. Ainda em consonância com o mestre Russell, acredito na possibilidade que a filosofia tem de remover “o dogmatismo, um tanto arrogante, daqueles que nunca viajaram para a região da dúvida libertadora”, e de que nos capacita a manter viva a “sensação de maravilha, mostrando coisas comuns em um ponto de vista incomum”.

Nutro expectativa semelhante por quem passa por um curso de psicologia ou por uma formação em psicanálise. Acho que, nesses dois últimos casos, ainda se impõe uma obrigação adicional, no caso, a de revelar, por meio de seus pensamentos, palavras e atos, o interesse e a curiosidade pelo outro, a abertura visível e explícita à escuta. Espero, no mesmo sentido, que um profissional da área psi tenha sensibilidade especial em relação às políticas públicas em saúde mental e ao sofrimento psíquico. Embora seja um mero estudante de psicologia, estou certo de que nossa imersão no curso (por meio de tantas aulas, iniciações científicas, estágios e atividade de extensão) deve nos ‘converter’ a uma postura de escuta refinada e de genuíno interesse pelas dores e alegrias (afinal, não somos urubus) do outro. Ainda sobre o que acabo de dizer, cada vez mais, considero uma obrigação minha investir na minha capacidade de acolher em lugar de simplesmente tolerar, de fundir ao invés de demarcar a alteridade. Há questões técnicas, metodológicas e estruturais imprescindíveis envolvidas no ofício do psicólogo, mas a psicologia também flerta com uma dimensão ‘espiritual’ (mais uma vez busco refúgio nas aspas): só essa esfera pode explicar as nossas funções mentais superiores, o nosso aparelho psíquico, o nosso interesse pelo outro.