Arte GENTILESCHI, Artemisia Judith Beheading Holofernes c. 1620 Oil on canvas, 147 x 108 cm cm Galleria degli Uffizi, Florence |
Hoje eu matei uma barata. Não me recordo quando foi a última vez em que matei, mas é provável que tenha sido há um bom tempo. Ao matar essa pequena barata — ou talvez antes, já ao persegui-la — fui acometido por uma sensação desagradável, recôndita, mas não inédita.
Muitas vezes, matei formigas e outros pequenos insetos; na maior parte das vezes, de maneira involuntária. Em outras ocasiões, recorri aos pés ou aos dedos das mãos. No último caso, ora apertando meu dedo contra a mesa — exatamente em cima da formiga — ora apertando um dedo contra o outro durante a caminhada do inseto por meus dedos. Em comum, esses momentos não despertaram quaisquer sensações; matar uma formiga quase equivalia a brincar com um farelo de um pão ou a retirá-lo dos dedos por meio da fricção e do arrasto que fazemos com uns dedos sobre outros.
Também já matei muitas baratas. Mas matar uma barata exige um pouco de mais violência. Você precisa persegui-la, eventualmente arrastar móveis e pisar com alguma força. Quase sempre, é preciso pisar mais de uma vez; muitas vezes, é preciso pisar muitas vezes, seja para acertá-la seja para terminar a matança, quando então a barata, agonizando, mas ainda não morta, deixa de tentar escapar aos pés que, como um deus, determina a linha de demarcação entre a vida e a morte de uma criatura.
Matar uma barata não é tão indiferente quanto matar uma formiga, não sei se pela maior dificuldade de matá-la ou se por seu volume maior em relação às formigas. De qualquer maneira, não é comum eu pensar que estou fazendo um mal ao eliminar um ser que considero tão repugnante. Pelo menos até hoje, quando mato uma barata, sou indiferente em relação à questão da dignidade de sua existência; mas, direta ou indiretamente, especialmente hoje, enfrentei a inescapável violência que existe em mim, e que existe em você.
Morei em uma casa de cujas caixas de esgoto e de gordura saíam muitas baratas. Quando desinsetizava a casa, incontáveis baratas tontas escapavam dos bueiros, e a mim cabia a terrível ação de persegui-las e matá-las. Arrepiado com essas más lembranças, sou ainda invadido por uma sutil lembrança do mau cheiro desses insetos e do arrepio que percorria minha espinha e minha pele ao me ver diante de dezenas ou centenas de baratas ainda vidas. Lembro-me de ainda arrepiado na espinha e na pele, recolher, com pá e vassoura, os corpos das baratas. Não raramente, uma ou algumas se movimentavam, e mais uma vez eu precisava pisotear com toda minha força e todo o ódio (nunca soube se contra elas ou contra a situação) que me invadia.
Também já matei um rato e uma cobra. Sim, eu já matei mamíferos. Em ambos os casos, não distantes temporalmente, estava, então, na transição entre minha infância e minha adolescência. Eu não era indiferente quanto à dignidade da vida de um rato e de uma cobra. Antes, a existência de ratos e cobras me causavam indignação contra a própria criação. Jamais me esqueci de toda violência que precisei empregar para matá-los. Com aquele pedaço de pau que usei, teria sido capaz, com a força que tenho hoje, de matar um ser humano. Exatamente como fez ontem um homem contra outro.
Tão logo eu joguei pelo vaso sanitário a barata que eu matei, ainda sob o peso da desagradável sensação de matar, sentei-me em frente ao meu notebook e vi a reportagem sobre o homem que, com um pedaço de pau, matou outro. Aqui, é claro, a sensação foi de outra espécie, e tanto diminuiu quanto aumentou as emoções de fundo que eu portava. Ter matado uma barata me causou uma sensação inespecífica; se precisasse traduzir fenomenologicamente essa experiência, poderia arriscar que essa sensação se expressou sob a forma de uma náusea, uma desorientação psíquica, uma angústia. Conectei-me, então, com a antiga casa dos bueiros de baratas voadoras. A reportagem do segurança que matou o morador de rua causou-me também uma sensação desagradável, mas de outra espécie. Uma profunda tristeza juntou-se a uma desesperança. Por outro lado, é apenas o espetáculo do que realmente somos capazes de fazer, a exemplo do homem que, para proteger sua casa, seus bens, sua família ou sua honra (seu self material), é capaz de fazer o mesmo.
A violência existe em nós. A violência está em nós. Contra a marcha da violência, somos dotados de dispositivos que recebem, por parte de filósofos, psicólogos e sociólogos, diversas denominações. Idealizamos linhas e fronteiras imaginárias entre as criaturas que podemos matar e as que não podemos: no meu caso, parece ter sido aquela linha que se estende dos pequenos insetos a ratos e cobras; outros acreditam poder matar cachorros ou gatos ou macacos; outros ainda creem poder matar humanos; há também aqueles que causam queimadas; outros ainda são os que creem que homens, pela privilegiada posição moral e intelectual que ocupam entre os viventes, devem se abster de qualquer tipo de violência contra todo e qualquer outro vivente. Independentemente da posição ocupada por cada um de nós nessa hierarquia, precisamos todos lidar com sua própria violência. Não nos é dada a possibilidade de ter ou não ter violência. Somos todos violentos. Temos apenas a possibilidade de manejar a violência que invariavelmente existe em nós. Um mundo melhor talvez seja aquele em que sejamos moral-, emocional- e intelectualmente capazes de aceitar nossa condição.
O que devo fazer com que a violência faz de mim, eu, que, violento que sou, matei hoje uma barata?
Muitas vezes, matei formigas e outros pequenos insetos; na maior parte das vezes, de maneira involuntária. Em outras ocasiões, recorri aos pés ou aos dedos das mãos. No último caso, ora apertando meu dedo contra a mesa — exatamente em cima da formiga — ora apertando um dedo contra o outro durante a caminhada do inseto por meus dedos. Em comum, esses momentos não despertaram quaisquer sensações; matar uma formiga quase equivalia a brincar com um farelo de um pão ou a retirá-lo dos dedos por meio da fricção e do arrasto que fazemos com uns dedos sobre outros.
Também já matei muitas baratas. Mas matar uma barata exige um pouco de mais violência. Você precisa persegui-la, eventualmente arrastar móveis e pisar com alguma força. Quase sempre, é preciso pisar mais de uma vez; muitas vezes, é preciso pisar muitas vezes, seja para acertá-la seja para terminar a matança, quando então a barata, agonizando, mas ainda não morta, deixa de tentar escapar aos pés que, como um deus, determina a linha de demarcação entre a vida e a morte de uma criatura.
Matar uma barata não é tão indiferente quanto matar uma formiga, não sei se pela maior dificuldade de matá-la ou se por seu volume maior em relação às formigas. De qualquer maneira, não é comum eu pensar que estou fazendo um mal ao eliminar um ser que considero tão repugnante. Pelo menos até hoje, quando mato uma barata, sou indiferente em relação à questão da dignidade de sua existência; mas, direta ou indiretamente, especialmente hoje, enfrentei a inescapável violência que existe em mim, e que existe em você.
Morei em uma casa de cujas caixas de esgoto e de gordura saíam muitas baratas. Quando desinsetizava a casa, incontáveis baratas tontas escapavam dos bueiros, e a mim cabia a terrível ação de persegui-las e matá-las. Arrepiado com essas más lembranças, sou ainda invadido por uma sutil lembrança do mau cheiro desses insetos e do arrepio que percorria minha espinha e minha pele ao me ver diante de dezenas ou centenas de baratas ainda vidas. Lembro-me de ainda arrepiado na espinha e na pele, recolher, com pá e vassoura, os corpos das baratas. Não raramente, uma ou algumas se movimentavam, e mais uma vez eu precisava pisotear com toda minha força e todo o ódio (nunca soube se contra elas ou contra a situação) que me invadia.
Também já matei um rato e uma cobra. Sim, eu já matei mamíferos. Em ambos os casos, não distantes temporalmente, estava, então, na transição entre minha infância e minha adolescência. Eu não era indiferente quanto à dignidade da vida de um rato e de uma cobra. Antes, a existência de ratos e cobras me causavam indignação contra a própria criação. Jamais me esqueci de toda violência que precisei empregar para matá-los. Com aquele pedaço de pau que usei, teria sido capaz, com a força que tenho hoje, de matar um ser humano. Exatamente como fez ontem um homem contra outro.
Tão logo eu joguei pelo vaso sanitário a barata que eu matei, ainda sob o peso da desagradável sensação de matar, sentei-me em frente ao meu notebook e vi a reportagem sobre o homem que, com um pedaço de pau, matou outro. Aqui, é claro, a sensação foi de outra espécie, e tanto diminuiu quanto aumentou as emoções de fundo que eu portava. Ter matado uma barata me causou uma sensação inespecífica; se precisasse traduzir fenomenologicamente essa experiência, poderia arriscar que essa sensação se expressou sob a forma de uma náusea, uma desorientação psíquica, uma angústia. Conectei-me, então, com a antiga casa dos bueiros de baratas voadoras. A reportagem do segurança que matou o morador de rua causou-me também uma sensação desagradável, mas de outra espécie. Uma profunda tristeza juntou-se a uma desesperança. Por outro lado, é apenas o espetáculo do que realmente somos capazes de fazer, a exemplo do homem que, para proteger sua casa, seus bens, sua família ou sua honra (seu self material), é capaz de fazer o mesmo.
A violência existe em nós. A violência está em nós. Contra a marcha da violência, somos dotados de dispositivos que recebem, por parte de filósofos, psicólogos e sociólogos, diversas denominações. Idealizamos linhas e fronteiras imaginárias entre as criaturas que podemos matar e as que não podemos: no meu caso, parece ter sido aquela linha que se estende dos pequenos insetos a ratos e cobras; outros acreditam poder matar cachorros ou gatos ou macacos; outros ainda creem poder matar humanos; há também aqueles que causam queimadas; outros ainda são os que creem que homens, pela privilegiada posição moral e intelectual que ocupam entre os viventes, devem se abster de qualquer tipo de violência contra todo e qualquer outro vivente. Independentemente da posição ocupada por cada um de nós nessa hierarquia, precisamos todos lidar com sua própria violência. Não nos é dada a possibilidade de ter ou não ter violência. Somos todos violentos. Temos apenas a possibilidade de manejar a violência que invariavelmente existe em nós. Um mundo melhor talvez seja aquele em que sejamos moral-, emocional- e intelectualmente capazes de aceitar nossa condição.
O que devo fazer com que a violência faz de mim, eu, que, violento que sou, matei hoje uma barata?