19/07/2024

(Autorais. Autobiografia) Quais demandas devo atender?

 

AACHEN, Hans von
Bacchus, Ceres and Cupid
1595-1605
Oil on canvas, 163 x 113 cm
Kunsthistorisches Museum, Vienna
 
14 e 19 de julho de 2024. Quais demandas devo atender? 
 
Não poucas foram as vezes em que me chegaram aos ouvidos a afirmação de que o processo analítico — seja em seu início seja nas revoluções ou mudanças de ciclo pelas quais passam o analisando — desencadeia não apenas uma sensação de ‘libertação’ pessoal, mas um ‘transbordamento’ de feridas, traumas e sofrimentos até então ‘escondidos’ (ou recalcados). Poucas foram as vezes, no entanto, em que ouvi menção à capacidade que esses ‘transbordamentos’ têm de gerar sofrimento ou incômodo para aqueles que com o analisando convivem.

A discrepância numérica entre os dois relatos não é à toa. Afinal, o processo analítico comporta uma significação muito pessoal para o analisando: o que está efetivamente em jogo para o indivíduo que se submete à análise é sua própria história; é, enfim, ele mesmo. Para aqueles que convivem com o analisando, por sua vez, os efeitos do processo analítico são também sentidos, mas de maneira indireta, e mediados pelo próprio analisando, em seu modo de estar no mundo e a partir das expectativas que são nutridas em relação a ele. Portanto, é esperada a discrepância quantitativa entre relatos sobre o papel da análise (i) para o analisando e, por outro lado, (ii) para aqueles que convivem com o analisando.
 
A mim, no entanto, interessam as duas dimensões. Interessa-me de maneira especial — inclusive pelas próprias características que me trazem à reflexão de hoje — a possibilidade de minimizar ou mesmo evitar o sofrimento de quem está ao meu lado. Para tanto, porém, é preciso um esforço consciente e uma persistência de propósito; fora do processo de racionalização que precede a possibilidade de internalização mental e comportamental de nossas intenções, é grande a probabilidade de malograr nosso desejo de não deixar resvalar no outro nossos ‘transbordamentos’. Não me é alheia a compreensão de que pequenas e inofensivas situações e ocasiões cotidianas guardam alguma relação com acontecimentos e eventos antigos e traumáticos. Por isso mesmo, algumas são as vezes em que também padecem, por esses ‘transbordamentos’, aquelas pessoas que, além de nenhuma ou pouca relação guardarem com nossos traumas, serem as que mais se interessam por nós, e que, não por acaso, estão ao nosso lado e, portanto, suscetíveis a testemunhar e a ser vítimas desses ‘transbordamentos’. É, para mim, penoso saber que gerei e gero sofrimento a quem está a meu lado todas as vezes em que a significação de traumas e frustrações pretéritos se impuseram a pequenas cenas do cotidiano.
 
Após esse introito, posso então começar a problematizar, em um nível mais íntimo, sobre esses conteúdos que estão transbordando.
 
A partir do trabalho que tenho realizado em minhas sessões de análise, intensificou-se em mim a percepção de que grande parte da minha história se constitui, se explica e, por isso mesmo, decorre de uma série de tomada de decisões mobilizadas por demandas as quais, posto que externas a mim, tomei como obrigações inquestionáveis, como que impostas a mim de cima para baixo.
 
Do ponto de vista pessoal, a relevância dessa compreensão diz respeito ao fato de eu não estar me referindo a situações banais de minha história. Refiro-me, antes, a fatos essenciais da minha própria existência, atestados por uma lembrança presente que se estende a meus primeiros anos de relações sociais mais complexas, no seio escolar. Refiro-me, por exemplo, ao fato de, desde os tempos alcançados por minha memória, ser proficiente na arte de alternar entre as ‘máscaras’ que sou capaz de usar com a mera finalidade de me adequar às demandas daqueles que estão diante de mim. Refiro-me ao fato de vivenciar com angústia e ansiedade terríveis a expectativa (infundada e irracional) de haver aborrecido ou enfurecido primeiro minha mãe e, posteriormente, as pessoas com quem me relacionei de maneira mais íntima por ter frustrado de alguma maneira suas demandas sobre mim. Sobre isso, é clara a recordação, hoje minimizada, da terrível associação de ansiedade e angústia sentidas a caminho da(s) minha(a) casa(s), geradas pela expectativa de ser repreendido por estar há mais tempo longe de casa do que deveria ou por ter feito algo errado. Recordo-me da sensação de angústia ou de alívio que até hoje sinto quando, ao voltar, perscruto os olhos das pessoas com quem convivo, reflexos do olhar de minha mãe. Sobre a significação pessoal dessa compreensão, refiro-me ao fato de o percurso que segui ao longo de minha graduação em filosofia se explicar inteiramente em função das demandas de uma amiga de então, que, sob o argumento de ter idade para ser minha mãe, e muito me querer bem, escolhia comigo (na verdade, por mim) a ordem com que eu cursaria as disciplinas obrigatórias e as disciplinas optativas que fiz. Refiro-me ao fato de não ter tido ingerência na escolha temática e metodológica de meu trabalho de conclusão de curso, de minha dissertação de mestrado e tampouco de minha tese de doutorado. No caso do meu trabalho de conclusão de curso, ao qual chamávamos de monografia de final de curso, sua eleição se explica simplesmente por ter tido um trabalho de final de disciplina elogiado e pela subsequente sugestão, daquele que se tornou meu primeiro orientador, de transformá-lo em monografia de final de curso. O primeiro capítulo impresso da primeira versão da minha dissertação de mestrado, que contava com 102 páginas ao final do primeiro ano do curso de mestrado, ainda sob a orientação do primeiro orientador, foi jogado na mesa pelo meu segundo orientador em nosso primeiro encontro sob a alegação de que até então eu não havia sido orientado; na verdade, o trabalho não se conformava com seus interesses ou sua perspectiva metodológica. Apenas isso: era um belo texto, ainda que pouco original, o que não é um pecado para uma dissertação de mestrado, e, pelo que tenho visto, tampouco tem sido, na prática, para uma tese de doutorado. A versão final da dissertação de mestrado e sua continuação, a tese de doutorado, ficaram a gosto do orientador. De fato, as decisões referentes à minha formação universitária e profissional couberam à minha amiga e ao meu orientador. Quando — continuo — digo que a relevância dessa compreensão diz respeito ao fato de eu não estar me referindo a situações banais, refiro-me ao fato de ter visitado ou me mantido dentro de instituições religiosas — algumas vezes com um alto nível de comprometimento, e em dissonância com minhas crenças e melhores interesses — em função de demandas alheias. Refiro-me ao fato de ter me mantido dentro de um partido político mesmo querendo sair, também por conta de hipotéticas demandas alheias. Refiro-me também aos sofrimentos a que me submeti desde a infância por conta de relações afetivas e de ‘amizade’, decorrentes do meu engajamento com ações claramente contrárias a meus melhores interesses: foi assim que angariei repreensões, advertências e suspensões escolares; foi assim que comecei a fumar e usar entorpecentes; foi assim que, já no final do mestrado, comecei a beber e a criar as condições propícias para o desenvolvimento do meu alcoolismo; foi assim que me mantive em relações infelizes; foi assim que gerei comprometimentos indissolúveis; foi assim que contraí dívidas impagáveis e que fui arrolado em um processo judicial na qualidade de fiador por parte de uma pessoa que já demonstrara de maneira explícita não honrar seus compromissos. Refiro-me aos dias e mais dias gastos atendendo às notificações e demandas pessoais dos aplicativos de mensagens instantâneas, com base no sentimento de que não posso aborrecer, frustrar ou enfurecer quem me escreve. Recordo-me que, por essa ‘crença’ irracional, incontáveis foram as noites que me encontram completamente exauridos — física e emocionalmente — e com um angustiante sentimento de desperdício de tempo e de vida. Eis os motivos pelos quais estou certo da relevância quanto à compreensão de que grande parte da minha história se constitui, se explica e decorre de uma série de tomada de decisões mobilizadas por demandas externas a mim e que, no entanto, tomei como obrigações inquestionáveis.
 
Acredito que, se hoje, tenho condições de pensar minha história com um maior nível de clareza, menos devo a meus próprios recursos psicológicos do que ao fato de meus pais jamais terem tentado manipular meus afetos e comportamentos por meio de demandas que, vindas deles, seriam muito potentes. Se, por um lado, ainda carrego comigo o olhar repreensivo de minha mãe (possivelmente uma fantasia minha), por outro eles possuem o mérito de sustentarem, comigo, uma relação sem demandas. A força desse fato em minha constituição psíquica se revela a cada vez que sinto idiossincráticos sentimentos de repulsa, desprezo ou estranhamento na presença de pais demandantes.
 
Ao longo das minhas sessões, tenho podido observar e falar sobre a relação fantasiosa que crio e alimento em relação a essas supostas demandas que continuo a atender, ainda que com menor intensidade. O processo analítico tem sido decisivo para o aumento de minha compreensão quanto ao fio condutor que sustenta as forças que atuam sobre mim e que me fazem viver em conformidade com as demandas. Os aspectos mais íntimos dessas forças não vêm ao caso, mas é importante compreender o que acontece com alguém que entende uma simples promessa de abraço e aceitação ou, alternativamente, a possibilidade de rejeição e de aborrecimento alheios como uma demanda que, de maneira imperiosa, e de baixo para cima, se impõe a si.
 
É imensurável a libertação pessoal que pode decorrer da ciência de que não é preciso e tampouco desejável atender a todas as demandas. Essa ciência não é, no entanto, e nem de longe, a mais essencial. Um processo emancipatório ainda mais poderoso resulta da compreensão e do esclarecimento das bases psíquicas sobre as quais se alicerçam as ficções e fantasias perpetradoras de demandas simplesmente inexistentes ou, mesmo que existentes, insignificantes para o suposto demandador. Mais do que compreender que não é possível, preciso e desejável atender às demandas que se nos apresentam, o que parece óbvio a partir de um pequeno escrutínio, importa também tornar consciente os processos psíquicos disfuncionais que sustentam essas demandas forjadas, ficcionais e fantasiosas. Salvaguardada as devidas proporções, tal ciência equivale a sair da prisão: é, com efeito, o que ocorre do ponto de vista psíquico quando podemos passar a viver não mais segundo leis e princípios heteronômicos. É como se, por um instante, você pudesse finalmente se sentir um indivíduo; apenas um indivíduo. Para alguém que, desde onde sua memória alcança, se determina por fatores externos, a sensação de libertação pessoal não exige que se torne um indivíduo pleno e integrado; basta se sentir, ainda que por apenas um momento, um indivíduo, com todo o preço que essa revelação cobra. Ainda que esse preço seja muito alto, seu jugo é muito mais suave do que o menor preço a se pagar por alguém cuja história é uma extensão do olhar do outro.
 
Finalizo essa reflexão lembrando o filósofo Marco Aurélio, que, no aforismo 55 de seu livro 7, nos recomenda para que não olhemos os instintos que regem os outros homens, devendo, antes, mantermo-nos com os olhos postos nos objetivos para que a nossa própria natureza nos guia: se a natureza-mundo nos dá as circunstâncias, nossa própria natureza nos diz quais são os chamamentos do nosso próprio dever.