Recordo-me sempre do D. e da Dna E., respectivamente, o zelador e uma moradora do prédio em que vivi entre meus 11 e 14 anos de idade.
Entre os anos de 1983 e 1992 (entre meus 2 e 11 anos de idade), vivi, com meus pais e com meu irmão, em um prédio residencial situado na Rua Alzira Brandão, uma rua equidistante em relação à Praça Saens Peña (no coração da Tijuca) e o Largo da Segunda-Feira (mais próximo do bairro Estácio de Sá).
Essa rua, a propósito, ganhava notoriedade na época de Copa do Mundo (lá estive durante as copas de 1986 e de 1990, e, em uma rua próxima, durante a copa de 1994). A transmissão da Globo sempre passava por lá durante as transmissões. Recordo-me do Galvão Bueno chamando à transmissão o pessoal do Alzirão naquele momento em que a televisão circulava pelas torcidas espalhadas no Brasil e no exterior.
Nesse prédio, vivíamos, eu e meu irmão, muito próximos apenas da minha mãe (que cuidava de nós em tempo integral) e de um casal idoso de vizinhos evangélicos e sem filhos. Como meu pai trabalhava fora, e, além disso, era muito quieto, minhas recordações de estar com ele são mais pontuais.
Dessa época, guardo recordações do saudável e entediante ócio de uma infância destituída de eletrônicos. Usávamos o Atari com muita parcimônia; minha mãe (e a ela agradeço muito por isso) liberava o uso do videogame apenas nos fins de semana.
Recordo-me de não ter muitas opções senão os livros, os poucos programas infantis disponíveis na TV (Xuxa, desenhos etc.), as fitas cassetes e vinis, e alguns poucos, porém preciosos, brinquedos. Recordo-me muito da onipresente bola de futebol, dos bonecos Playmobil e do Comandos em Ação, além do ‘futebol de botão’). Nunca convivemos com animais de estimação. Se, por um lado, não obtive algumas das vantagens de ser uma criança de rua, especialmente no que diz respeito ao desenvolvimento de habilidades motoras e sociais, é verdade que, por outro, obtive vantagens de uma infância mais introspectiva e isolada, a começar pela relação de amor que desenvolvi com os livros e com a música e pela percepção cognitiva e emocional de que, assim como nascemos a sós, morreremos a sós.
Do ponto de vista pessoal, uma grande revolução ocorreu no ano de 1992, quando, aos 11 anos de idade, entrei no ginásio (atual Fundamental II), passei a ir sozinho à escola, ganhei a chave de casa e, no mês de abril, mudamo-nos para um prédio residencial repleto de meninos da nossa idade. Situado na esquina das ruas Conde de Bonfim e Carmela Dutra, na Tijuca (Rio de Janeiro-RJ), este é o prédio em que trabalhava o Marcolino (link). Aí morei entre Abril de 1992 e Abril de 1996 (entre meus quase 10 anos e quase 15 anos).
Meu paraíso estava no playground. Dispunha de um improvisado campo de futebol e de parceiros para jogar. As tantas colunas de concreto existentes dentro do nosso campo de futebol improvisado em nossa imaginação atrapalhavam um pouco (muito, na verdade), mas, para mim, eram adversários a ser driblados. Eventualmente, trombávamos ou chutávamos essas colunas e outras armadilhas existentes no campo. Tornamo-nos jogadores melhores, mais rápidos e mais fortes por conta de tantos obstáculos.
A grande maioria das crianças e adolescentes que ali viviam eram filhos de proprietários. Eu e meu irmão éramos inquilinos. Acho que esta condição fazia um pouco de diferença na maneira como alguns moradores e funcionários nos enxergavam. É claro que o fato de eu ser um pouco agitado demais contribuía para que eu chamasse negativamente a atenção para mim em algumas situações.
Uma das primeiras pessoas que aborreci no prédio foi o zelador. D., o zelador do prédio, morava no playground, dentro do nosso campo de futebol. Parece que, em geral, a convivência com os meninos era pacífica até o momento em que chegamos. Houve algum momento em que D. passou a não gostar de mim. Antes de se tornar meu inimigo, o zelador, D., tratava-me como a todos: chamava-me de ‘cara de gato’. Nunca entendi o apelido, mas acho que nunca pensei em lhe perguntar o porquê de tal apelido. Certo estou hoje de que não saberia explicar as razões desse apelido proferido sem muito comprometimento. Será, pergunto-me eu, que havia algo de pejorativo nesse apelido?Para mim, não havia nada de repugnante no simpático gatinho.
Hoje, no entanto, sei que há símbolos negativos associados a esse bichano.
Contam que, certa vez, a bola bateu no vidro da casa do D., que, supostamente, saiu muito irritado atrás do moleque do 902. Ocorre que, nesse dia, eu não estava presente. Juro.
Outra pessoa que aborreci foi a Dna. E. Sua inimizade foi ainda mais marcante que a do D., o zelador ‘cara de gato’. Duvido que a Dna. E. esteja viva. Ela então já era bem idosa.
Dna. E. morava no apartamento de baixo ao nosso. Certa vez, fomos resgatar um moleque que morava no andar da Dna. E. para jogar bola. Enquanto os outros se dirigiram ao seu apartamento, eu fiquei fazendo embaixadinhas e driblando adversários imaginários no hall do 8º andar. Ela abriu a porta, olhou para mim com uma expressão de indignação que não esqueço e disse:
Dna. E. morava no apartamento de baixo ao nosso. Certa vez, fomos resgatar um moleque que morava no andar da Dna. E. para jogar bola. Enquanto os outros se dirigiram ao seu apartamento, eu fiquei fazendo embaixadinhas e driblando adversários imaginários no hall do 8º andar. Ela abriu a porta, olhou para mim com uma expressão de indignação que não esqueço e disse:
“- Além de preto, é safado!”.
Aprendi desde cedo a respeitar os mais velhos. Calei-me e parei com a bola.
Outro dia fomos novamente buscar os moleques que moravam no andar da Dna. E. Eles não estavam e os outros foram buscar mais moleques no andar de baixo. Eu resolvi simular uma natação no hall do famigerado andar da Dna E. Estava, eu, simulando um dos desafios impostos pelo Sergio Mallandro em um quadro de seu programa, a Porta dos desesperados. Estava eu nadando no hall, fugindo do tubarão, e mais uma vez a Dna. E., cuja porta ficava em frente ao hall, saiu ao corredor, olhou indignada para mim e disse:
“- Além de preto, é maluco!”.
Meus pais não sabiam dos insultos racistas. Mas o mundo era diferente também. Pelo menos eu não tive acesso, em minha infância, a qualquer tipo de educação identitária ou política.
Mais do que o conteúdo proferido, chamou-me a atenção a hostilidade da Dna. E. Dei início a uma série de (pequenas) vinganças contra ela. Certa vez, encontrei óleo de carro na garagem e, sem hesitar, levei-o para o andar da Dna E. e o despejei sobre seu tapete. Certa vez, viajei para a região dos lagos com a família de um amigo desse prédio. Decidimos ligar, durante a madrugada, para a Dna. E. Consegui o telefone dela após ludibriar o Marcolino, que me passou. Fiquei de 2 às 4 horas ligando e, quando ela ou seu marido atendiam a ligação, gritávamos, eu e meu parceiro:
“- Dna E.!!!!!! E.!!!!!!!!!!!!!!!”
De certa maneira, não sei o quanto o racismo da Dna. E. me feriu. Recordo-me, no entanto, que as vinganças não nutriram a minha sede de vingança. Este é o problema do rancor e da vingança. São sentimentos que, ao que parece, nunca são supridos. Equivale ao desejo dos orientais, à vontade do Schopenhauer.