11/05/2024

(Crônicas. Autobiografia) Marcolino

AACHEN, Hans von
Allegory of Peace, Art and Abundance
1602
Oil on canvas, 197 x 142 cm
The Hermitage, St. Petersburg



“Quando se aprende a amar, o mundo passa a ser seu”
Renato Russo



Uma das épocas mais felizes de vida foi o momento em que, no início dos anos 90, fazia a transição de minha infância para a adolescência. Eu não dispunha de muitos recursos mentais: não havia muita coisa em minha mente para além dos amigos, o futebol e as primeiras paixões. No ano de 1992, tive a oportunidade de me mudar de um prédio em que só havia eu e meu irmão para um prédio repleto de moleques da nossa idade, sendo que alguns dos quais frequentavam a mesma escola que eu e meu irmão frequentávamos desde a mais tenra infância.

Tive a oportunidade de começar a andar sozinho nesse período, e tive a oportunidade de fazer os primeiros amigos que tive na vida. Relações que pareciam tão fortes, e, no entanto, e como é de se esperar, não ficou ninguém. Como é. Mas, naquele momento, eram, para mim, os melhores amigos da vida inteira. Tive a oportunidade de frequentar o Tijuca Tênis Clube, onde foi fomentado o grande prazer que tinha pelo futebol, o primeiro beijo, as aulas de natação etc. Ainda que eu gostasse muito do clube, o local em que eu realmente me sentia em casa, no entanto, era o prédio. Éramos, os meninos, como irmãos. Eu não tinha medo ou receio. Não havia possibilidade de bullying. Não havia meninos mais velhos maldosos. Era o local em que eu e meu irmão estávamos protegidos. Muitas foram as relações que mantive com moradores e com os porteiros do prédio. Algumas, boas; outras, ruins. As relações ruins eram quase todas por minha culpa; meu nível de agitação e de euforia era, para alguns, insuportável. Após uma primeira infância solitária, passava a conviver com muitos moleques da minha idade: começava a me sentir gente.

Relembro-me do Marcolino, um dos faxineiros do prédio.

Marcolino foi um faxineiro e substituto eventual dos porteiros e vigias. Provavelmente por sua incapacidade de manter uma postura mais austera, ou talvez por suas (severas, creio eu) limitações cognitivas, Marcolino não foi promovido à categoria de porteiro. Marcolino não seria aprovado como porteiro (ou garçom) pela burguesia tijucana de classe média. Em primeiro lugar, Marcolino era um negro muito alto, magro e deselegante para os padrões que os burgueses esperam de seus serviçais; era desdentado; além de muito magro e curvado, não conseguia ter deferência no linguajar ou no vestuário. Marcolino era um daqueles velhos malandros que são cada vez mais raros no Rio de Janeiro. Sua fala era rasgada; só depois de muita convivência é que conseguíamos entender o que dizia; mais do que isso, conseguíamos entender que suas palavras não eram bem concatenadas entre si: Marcolino proferia umas palavras desconexas que só faziam sentido em sua cabeça repleta de cachaça. Era um zé pilintra, e mantinha aquele estilo que alguém de fora do Rio de Janeiro não acredita existir fora do carnaval.

Não sei se Marcolino tinha 50 ou 80 anos entre os anos de 1992 e 1995. Estou certo, no entanto, de que Marcolino é hoje falecido, a tirar pela equação entre os tantos anos em que o vi pela última vez associado com a compleição física que tinha então: ‘Que Deus o tenha’. Mas, sempre que me lembro de Marcolino, vejo-o vagando pelas encruzilhadas da Tijuca, feliz, bebendo cachaça e fumando. Esse é o Marcolino. A morte não pode redimi-lo. Marcolino é um exu. Ele não será capaz de um dia cultivar violetas na janela. Marcolino não tocará harpa. Marcolino não orientará espíritos perdidos. No máximo, Marcolino está tocando pandeiro. Marcolino é um espírito estável. Não é capaz de evoluir ou regredir. Marcolino é um anjo pronto: não consigo vislumbrá-lo senão como o velho malandro tão afim a nós, as crianças, os púberes, os moleques cariocas.

Marcolino era dado ao álcool. Não raro, chegava ao trabalho completamente embriagado. Para nós, os moleques, isso não fazia a menor diferença. Para nós, os moleques, não podia haver alguém tão ‘gente boa’ como Marcolino. O velho Marcolino era leve como uma pluma.

Era o nosso torcedor. Era feliz na convivência com a molecagem. Nós, os moleques, nos considerávamos os verdadeiros craques da bola. E o Marcolino, talvez de maneira inconsciente, ou então por meio da consciência que só os anjos possuem, fomentava nossos sonhos. Enquanto passávamos com nossas bolas de futebol, e eu com meus sonhos de um dia ser um craque da bola, Marcolino, com sua risada desdentada, dizia, em tom brincalhão e com sua postura de malandro: ‘Pelé, Didi, Zagalo, Vavá, Pepe, Romário’, cada nome correspondendo a um de nós. Não entendíamos nada dessa sua escalação imaginária de jogadores de diferentes tempos históricos. Acho que ele não conhecia os craques da época, senão o Romário. Ele nem deixava claro quem era quem naquela sua escalação imaginária, que às vezes misturava Pelé com Zico. Na verdade, entendíamos o que Marcolino estava dizendo pelo menos por causa de nomes tais como Zico (obviamente, Marcolino era flamenguista), Pelé e Garrincha. Essas cenas eram desprovidas de qualquer relevância social. Não éramos recíprocos a essa conversa risonha que Marcolino no fundo tinha com ele mesmo. Era uma espécie de grande vovô se divertindo consigo mesmo e sem a pretensão de nos fazer entendê-lo.

Certa vez, eu criei um tumulto imenso na portaria. Tenho, dentro de mim, uma grande agressividade. Não era diferente naquele momento. Eu queria brigar com alguém. E outro menino queria brigar com outro menino. De repente, numa daquelas noites em que Marcolino substituía o vigia, ele tira um desses livros de autoajuda da gaveta da mesa da portaria, olha para nós e, sem qualquer referência explícita às confusões que armávamos, leu, com a voz cantada do malandro, e para si mesmo, o título: “O mais importante é o verdadeiro amor”. Naquele momento, todas as querelas cessaram. Lembro-me de ter sido retirado da posição em que estava, pela força do humor descompromissado e simples do velho Marcolino. Eu duvido que Marcolino andou muitas páginas daquele livro, mas aquele livro serviu para alguma coisa. Esse é o Marcolino.

Lembro-me com tristeza do único dia em que vi Marcolino triste, ainda que sua dor só fosse transmitida por certa reticência de seu olhar: refiro-me ao dia em que, por engano, balearam e mataram seu filho. Claro que, do alto de meus 12, 13 anos, fui incapaz de perceber, como hoje, a significação daquela dor. E, como um púbere, não pude mesmo perceber: no dia seguinte, Marcolino era o Marcolino de sempre. Com seus maneirismos da favela, com sua malemolência, Marcolino era de novo o nosso amigão, o malandro que não dizia nada com nada. O malandro para quem eu gostava de eventualmente levar as balas que eu furtava nas lojas americanas. Ao dividir as balas com o Marcolino, ele se tornava meu cúmplice. Eu era de fato muito louco: era dado a brincadeiras de brigas, inclusive com os porteiros e faxineiros do prédio. Minha agitação era incontida, e sempre extravasava para manifestações violentas. Mas nunca consegui ter vontade de fazer isso com Marcolino, nosso intocável anjo-malandro negro. Havia certo respeito ao velho-malandro-negro-pilintra.

Marcolino era diferente de todos os outros. Para o mundo, Marcolino não é mais que um pobre preto e favelado morto. Para nós, no entanto, Marcolino pode ser muito mais. Marcolino ficou registrado em meu coração, assim como no do meu irmão, dos meus pais e dos outros meninos do prédio. Esteja em paz, Marcolino.

Assinado: Pelé, ou Zico, ou Piaza, talvez Romário, ou Tostão...tanto faz. 
 
 

(Crônicas. Autobiografia) D., o zelador, e Dna E., a vizinha

AACHEN, Hans von
Allegory
1598
Oil on copper, 56 x 47 cm
Alte Pinakothek, Munich
 
Recordo-me sempre do D. e da Dna E., respectivamente, o zelador e uma moradora do prédio em que vivi entre meus 11 e 14 anos de idade. 

Entre os anos de 1983 e 1992 (entre meus 2 e 11 anos de idade), vivi, com meus pais e com meu irmão, em um prédio residencial situado na Rua Alzira Brandão, uma rua equidistante em relação à Praça Saens Peña (no coração da Tijuca) e o Largo da Segunda-Feira (mais próximo do bairro Estácio de Sá).
 
Essa rua, a propósito, ganhava notoriedade na época de Copa do Mundo (lá estive durante as copas de 1986 e de 1990, e, em uma rua próxima, durante a copa de 1994). A transmissão da Globo sempre passava por lá durante as transmissões. Recordo-me do Galvão Bueno chamando à transmissão o pessoal do Alzirão naquele momento em que a televisão circulava pelas torcidas espalhadas no Brasil e no exterior.
 
Nesse prédio, vivíamos, eu e meu irmão, muito próximos apenas da minha mãe (que cuidava de nós em tempo integral) e de um casal idoso de vizinhos evangélicos e sem filhos. Como meu pai trabalhava fora, e, além disso, era muito quieto, minhas recordações de estar com ele são mais pontuais.
 
Dessa época, guardo recordações do saudável e entediante ócio de uma infância destituída de eletrônicos. Usávamos o Atari com muita parcimônia; minha mãe (e a ela agradeço muito por isso) liberava o uso do videogame apenas nos fins de semana. 
 
Recordo-me de não ter muitas opções senão os livros, os poucos programas infantis disponíveis na TV (Xuxa, desenhos etc.), as fitas cassetes e vinis, e alguns poucos, porém preciosos, brinquedos. Recordo-me muito da onipresente bola de futebol, dos bonecos Playmobil e do Comandos em Ação, além do ‘futebol de botão’). Nunca convivemos com animais de estimação. Se, por um lado, não obtive algumas das vantagens de ser uma criança de rua, especialmente no que diz respeito ao desenvolvimento de habilidades motoras e sociais, é verdade que, por outro, obtive vantagens de uma infância mais introspectiva e isolada, a começar pela relação de amor que desenvolvi com os livros e com a música e pela percepção cognitiva e emocional de que, assim como nascemos a sós, morreremos a sós.
 
Do ponto de vista pessoal, uma grande revolução ocorreu no ano de 1992, quando, aos 11 anos de idade, entrei no ginásio (atual Fundamental II), passei a ir sozinho à escola, ganhei a chave de casa e, no mês de abril, mudamo-nos para um prédio residencial repleto de meninos da nossa idade. Situado na esquina das ruas Conde de Bonfim e Carmela Dutra, na Tijuca (Rio de Janeiro-RJ), este é o prédio em que trabalhava o Marcolino (link). Aí morei entre Abril de 1992 e Abril de 1996 (entre meus quase 10 anos e quase 15 anos).
 
Meu paraíso estava no playground. Dispunha de um improvisado campo de futebol e de parceiros para jogar. As tantas colunas de concreto existentes dentro do nosso campo de futebol improvisado em nossa imaginação atrapalhavam um pouco (muito, na verdade), mas, para mim, eram adversários a ser driblados. Eventualmente, trombávamos ou chutávamos essas colunas e outras armadilhas existentes no campo. Tornamo-nos jogadores melhores, mais rápidos e mais fortes por conta de tantos obstáculos.
 
A grande maioria das crianças e adolescentes que ali viviam eram filhos de proprietários. Eu e meu irmão éramos inquilinos. Acho que esta condição fazia um pouco de diferença na maneira como alguns moradores e funcionários nos enxergavam. É claro que o fato de eu ser um pouco agitado demais contribuía para que eu chamasse negativamente a atenção para mim em algumas situações.
 
Uma das primeiras pessoas que aborreci no prédio foi o zelador. D., o zelador do prédio, morava no playground, dentro do nosso campo de futebol. Parece que, em geral, a convivência com os meninos era pacífica até o momento em que chegamos. Houve algum momento em que D. passou a não gostar de mim. Antes de se tornar meu inimigo, o zelador, D., tratava-me como a todos: chamava-me de ‘cara de gato’. Nunca entendi o apelido, mas acho que nunca pensei em lhe perguntar o porquê de tal apelido. Certo estou hoje de que não saberia explicar as razões desse apelido proferido sem muito comprometimento. Será, pergunto-me eu, que havia algo de pejorativo nesse apelido?Para mim, não havia nada de repugnante no simpático gatinho. 
 
Hoje, no entanto, sei que há símbolos negativos associados a esse bichano.
 
Contam que, certa vez, a bola bateu no vidro da casa do D., que, supostamente, saiu muito irritado atrás do moleque do 902. Ocorre que, nesse dia, eu não estava presente. Juro.
 
Outra pessoa que aborreci foi a Dna. E. Sua inimizade foi ainda mais marcante que a do D., o zelador ‘cara de gato’. Duvido que a Dna. E. esteja viva. Ela então já era bem idosa.
Dna. E. morava no apartamento de baixo ao nosso. Certa vez, fomos resgatar um moleque que morava no andar da Dna. E. para jogar bola. Enquanto os outros se dirigiram ao seu apartamento, eu fiquei fazendo embaixadinhas e driblando adversários imaginários no hall do 8º andar. Ela abriu a porta, olhou para mim com uma expressão de indignação que não esqueço e disse:
 
“- Além de preto, é safado!”.
 
Aprendi desde cedo a respeitar os mais velhos. Calei-me e parei com a bola.
 
Outro dia fomos novamente buscar os moleques que moravam no andar da Dna. E. Eles não estavam e os outros foram buscar mais moleques no andar de baixo. Eu resolvi simular uma natação no hall do famigerado andar da Dna E. Estava, eu, simulando um dos desafios impostos pelo Sergio Mallandro em um quadro de seu programa, a Porta dos desesperados. Estava eu nadando no hall, fugindo do tubarão, e mais uma vez a Dna. E., cuja porta ficava em frente ao hall, saiu ao corredor, olhou indignada para mim e disse:
 
“- Além de preto, é maluco!”.
 
Meus pais não sabiam dos insultos racistas. Mas o mundo era diferente também. Pelo menos eu não tive acesso, em minha infância, a qualquer tipo de educação identitária ou política.
 
Mais do que o conteúdo proferido, chamou-me a atenção a hostilidade da Dna. E. Dei início a uma série de (pequenas) vinganças contra ela. Certa vez, encontrei óleo de carro na garagem e, sem hesitar, levei-o para o andar da Dna E. e o despejei sobre seu tapete. Certa vez, viajei para a região dos lagos com a família de um amigo desse prédio. Decidimos ligar, durante a madrugada, para a Dna. E. Consegui o telefone dela após ludibriar o Marcolino, que me passou. Fiquei de 2 às 4 horas ligando e, quando ela ou seu marido atendiam a ligação, gritávamos, eu e meu parceiro:
 
“- Dna E.!!!!!! E.!!!!!!!!!!!!!!!”
 
De certa maneira, não sei o quanto o racismo da Dna. E. me feriu. Recordo-me, no entanto, que as vinganças não nutriram a minha sede de vingança. Este é o problema do rancor e da vingança. São sentimentos que, ao que parece, nunca são supridos. Equivale ao desejo dos orientais, à vontade do Schopenhauer.