AACHEN, Hans von Allegory of Peace, Art and Abundance 1602 Oil on canvas, 197 x 142 cm The Hermitage, St. Petersburg |
“Quando se aprende a amar, o mundo passa a ser seu”
Renato Russo
Renato Russo
Uma das épocas mais felizes de vida foi o momento em que, no início dos anos 90, fazia a transição de minha infância para a adolescência. Eu não dispunha de muitos recursos mentais: não havia muita coisa em minha mente para além dos amigos, o futebol e as primeiras paixões. No ano de 1992, tive a oportunidade de me mudar de um prédio em que só havia eu e meu irmão para um prédio repleto de moleques da nossa idade, sendo que alguns dos quais frequentavam a mesma escola que eu e meu irmão frequentávamos desde a mais tenra infância.
Tive a oportunidade de começar a andar sozinho nesse período, e tive a oportunidade de fazer os primeiros amigos que tive na vida. Relações que pareciam tão fortes, e, no entanto, e como é de se esperar, não ficou ninguém. Como é. Mas, naquele momento, eram, para mim, os melhores amigos da vida inteira. Tive a oportunidade de frequentar o Tijuca Tênis Clube, onde foi fomentado o grande prazer que tinha pelo futebol, o primeiro beijo, as aulas de natação etc. Ainda que eu gostasse muito do clube, o local em que eu realmente me sentia em casa, no entanto, era o prédio. Éramos, os meninos, como irmãos. Eu não tinha medo ou receio. Não havia possibilidade de bullying. Não havia meninos mais velhos maldosos. Era o local em que eu e meu irmão estávamos protegidos. Muitas foram as relações que mantive com moradores e com os porteiros do prédio. Algumas, boas; outras, ruins. As relações ruins eram quase todas por minha culpa; meu nível de agitação e de euforia era, para alguns, insuportável. Após uma primeira infância solitária, passava a conviver com muitos moleques da minha idade: começava a me sentir gente.
Relembro-me do Marcolino, um dos faxineiros do prédio.
Marcolino foi um faxineiro e substituto eventual dos porteiros e vigias. Provavelmente por sua incapacidade de manter uma postura mais austera, ou talvez por suas (severas, creio eu) limitações cognitivas, Marcolino não foi promovido à categoria de porteiro. Marcolino não seria aprovado como porteiro (ou garçom) pela burguesia tijucana de classe média. Em primeiro lugar, Marcolino era um negro muito alto, magro e deselegante para os padrões que os burgueses esperam de seus serviçais; era desdentado; além de muito magro e curvado, não conseguia ter deferência no linguajar ou no vestuário. Marcolino era um daqueles velhos malandros que são cada vez mais raros no Rio de Janeiro. Sua fala era rasgada; só depois de muita convivência é que conseguíamos entender o que dizia; mais do que isso, conseguíamos entender que suas palavras não eram bem concatenadas entre si: Marcolino proferia umas palavras desconexas que só faziam sentido em sua cabeça repleta de cachaça. Era um zé pilintra, e mantinha aquele estilo que alguém de fora do Rio de Janeiro não acredita existir fora do carnaval.
Não sei se Marcolino tinha 50 ou 80 anos entre os anos de 1992 e 1995. Estou certo, no entanto, de que Marcolino é hoje falecido, a tirar pela equação entre os tantos anos em que o vi pela última vez associado com a compleição física que tinha então: ‘Que Deus o tenha’. Mas, sempre que me lembro de Marcolino, vejo-o vagando pelas encruzilhadas da Tijuca, feliz, bebendo cachaça e fumando. Esse é o Marcolino. A morte não pode redimi-lo. Marcolino é um exu. Ele não será capaz de um dia cultivar violetas na janela. Marcolino não tocará harpa. Marcolino não orientará espíritos perdidos. No máximo, Marcolino está tocando pandeiro. Marcolino é um espírito estável. Não é capaz de evoluir ou regredir. Marcolino é um anjo pronto: não consigo vislumbrá-lo senão como o velho malandro tão afim a nós, as crianças, os púberes, os moleques cariocas.
Marcolino era dado ao álcool. Não raro, chegava ao trabalho completamente embriagado. Para nós, os moleques, isso não fazia a menor diferença. Para nós, os moleques, não podia haver alguém tão ‘gente boa’ como Marcolino. O velho Marcolino era leve como uma pluma.
Era o nosso torcedor. Era feliz na convivência com a molecagem. Nós, os moleques, nos considerávamos os verdadeiros craques da bola. E o Marcolino, talvez de maneira inconsciente, ou então por meio da consciência que só os anjos possuem, fomentava nossos sonhos. Enquanto passávamos com nossas bolas de futebol, e eu com meus sonhos de um dia ser um craque da bola, Marcolino, com sua risada desdentada, dizia, em tom brincalhão e com sua postura de malandro: ‘Pelé, Didi, Zagalo, Vavá, Pepe, Romário’, cada nome correspondendo a um de nós. Não entendíamos nada dessa sua escalação imaginária de jogadores de diferentes tempos históricos. Acho que ele não conhecia os craques da época, senão o Romário. Ele nem deixava claro quem era quem naquela sua escalação imaginária, que às vezes misturava Pelé com Zico. Na verdade, entendíamos o que Marcolino estava dizendo pelo menos por causa de nomes tais como Zico (obviamente, Marcolino era flamenguista), Pelé e Garrincha. Essas cenas eram desprovidas de qualquer relevância social. Não éramos recíprocos a essa conversa risonha que Marcolino no fundo tinha com ele mesmo. Era uma espécie de grande vovô se divertindo consigo mesmo e sem a pretensão de nos fazer entendê-lo.
Certa vez, eu criei um tumulto imenso na portaria. Tenho, dentro de mim, uma grande agressividade. Não era diferente naquele momento. Eu queria brigar com alguém. E outro menino queria brigar com outro menino. De repente, numa daquelas noites em que Marcolino substituía o vigia, ele tira um desses livros de autoajuda da gaveta da mesa da portaria, olha para nós e, sem qualquer referência explícita às confusões que armávamos, leu, com a voz cantada do malandro, e para si mesmo, o título: “O mais importante é o verdadeiro amor”. Naquele momento, todas as querelas cessaram. Lembro-me de ter sido retirado da posição em que estava, pela força do humor descompromissado e simples do velho Marcolino. Eu duvido que Marcolino andou muitas páginas daquele livro, mas aquele livro serviu para alguma coisa. Esse é o Marcolino.
Lembro-me com tristeza do único dia em que vi Marcolino triste, ainda que sua dor só fosse transmitida por certa reticência de seu olhar: refiro-me ao dia em que, por engano, balearam e mataram seu filho. Claro que, do alto de meus 12, 13 anos, fui incapaz de perceber, como hoje, a significação daquela dor. E, como um púbere, não pude mesmo perceber: no dia seguinte, Marcolino era o Marcolino de sempre. Com seus maneirismos da favela, com sua malemolência, Marcolino era de novo o nosso amigão, o malandro que não dizia nada com nada. O malandro para quem eu gostava de eventualmente levar as balas que eu furtava nas lojas americanas. Ao dividir as balas com o Marcolino, ele se tornava meu cúmplice. Eu era de fato muito louco: era dado a brincadeiras de brigas, inclusive com os porteiros e faxineiros do prédio. Minha agitação era incontida, e sempre extravasava para manifestações violentas. Mas nunca consegui ter vontade de fazer isso com Marcolino, nosso intocável anjo-malandro negro. Havia certo respeito ao velho-malandro-negro-pilintra.
Marcolino era diferente de todos os outros. Para o mundo, Marcolino não é mais que um pobre preto e favelado morto. Para nós, no entanto, Marcolino pode ser muito mais. Marcolino ficou registrado em meu coração, assim como no do meu irmão, dos meus pais e dos outros meninos do prédio. Esteja em paz, Marcolino.
Assinado: Pelé, ou Zico, ou Piaza, talvez Romário, ou Tostão...tanto faz.